sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A posta vai ser longa. Eu acho que é de ler, mas vocês é que sabem.


Na última assembleia de comarca, fiz a seguinte intervenção:

"Com a implementação rigorosa das novas regras das circunscrições, o que se espera que aconteça no 2º ou 3º trimestre do próximo ano, o Tribunal da nossa Comarca deverá ficar com competência exclusiva. A competência exclusiva atribuída, ao que tudo indica é a executiva.
Em suma, a pratica da advocacia, como a conhecemos e praticamos, até hoje, deixará de existir.
Não querendo entrar em detalhes exaustivos, basta que façamos um exercício mental curto e com um exemplo de pouca significância, como o que vai custar aos clientes fazer seguir um processo crime, de um crime particular, para perceber o impacto nas questões verdadeiramente complicadas, já para não dizer, rentáveis, que serão de sobremaneira irremediavelmente afectadas."

Agora pausa. Respirar.

Porque isto foi o que eu disse e isto porque, ao contrario do que muitos podem pensar, mesmo sendo uma mistura entre camionista e estivador, sou uma senhora deveras profissional e não me expresso só através de palavrões, alarvidades e frases propositadamente mal construídas. Mas na verdade, no meu íntimozinho, o que lhes queria dizer era:

Coleguinhas do meu coração empedernido e desprovido de emoções, aqueles processos fajutos de injurias e merdas do género que fazíamos todos os dias, de olhinhos fechados e à ceguinho seja eu e que tão bom dinheirinhos nos traziam, porque davam pouco trabalho, nenhuma despesa e parece que não, mas no final do mês davam para pagar muita conta lá do escritório, esses processos, esqueçam, ok? Esqueçam, porque basta vir o primeiro e ver a confusão que vai ser mais o dinheirão que vai ter que pagar, que não vem mais nenhum.

Então vejam, vem o Armindo ali de trás das couves, ao vosso escritório e diz que quer seguir com queixa-crime contra o Berto que lhe gritou: “Vai levar no cú ó paneleiro”.
E vocês seguem com o processo.
O Armindo, que viveu sempre do trabalho, não tem poupanças, mas que porque tem paga e registada no seu nome, a casa em que mora e que construiu ele mesmo, com as suas mãos, durante 20 anos, a assentar tijolos ao fim de semana, não tem direito ao Apoio Judiciário, por isso, incha logo com 204,00 euros, para se constituir Assistente.
Depois temos que dizer ao Armindo que o Tribunal agora já não funciona aqui, fica a 50 km.
E também dizemos ao Armindo, que uma vez que o processo não corre aqui, vamos ter que lhe cobrar mais uns euritos, por causa das deslocações e que ele próprio vai ter que gastar ainda umas massas valentes, sempre que tiver que se deslocar ao Tribunal.
Depois a alturas tantas pedimos-lhe as testemunhas.
Vem o Armindo a enrolar o chapéu nas mãos muito nervoso a dizer que ai Srª Drª, ninguém quer vir servir de testemunha porque não têm transporte para tão longe, se fosse aqui tinha umas vinte, mas como é tão longe não sei se consigo levar alguém.
Dizemos ao Armindo que tem de andar da perna, senão bem que come pela medida grande.
O Armindo lá consegue convencer três pessoinhas, que no dia do julgamento vão com ele na carrinha de caixa aberta e como são um bando de aproveitadores, ainda mamam o almoço à custa do Armindo.
Ficcionemos agora, porque só mesmo no plano da ficção é que vai acontecer, que o julgamento do Armindo é feito na primeira marcação.
No dia, as testemunhas do Armindo, que mais pareciam possuídas pelo demónio, engasgam-se, atrapalham-se, metem os pés pelas mãos e não dizem nada de jeito.
Sentença: O Arguido beneficia do in dúbio pró réu e é absolvido.

O Armindo incha com as custas.
O Armindo recebe a nossa conta de honorários.

Quando vier pagar o Armindo vai dizer, ai Srª Drª, se eu soubesse que isto me ia custar os olhos da cara e os pêlos do cú, mais valia mesmo era ter ido levar nele.

2 comentários:

Eva disse...

Não é que o caso seja para isso...mas a forma como o apresentas fez-me chorar a rir!
Bom fim-de-semana

moni disse...

Caramba Rachel! "Justiça" te seja feita!Fantástico poder de síntese!! Nem mais!
Bom fim de semana.